quinta-feira, novembro 22, 2007

Começando a brincar com as palavras

Sob o olhar insidioso do capitão, ela ficava aos poucos remoendo os rascunhos que há tempos vinha escondendo, olhava-os com certa repugnância, como se estivesse na hora de por fim àquilo que por anos a atormentara. Mas não poderia fazer isso na frente do Capitão, ele descobriria o seu segredo, descobriria a verdade, e isso não, não podia acontecer.
Continuou ali, parada, imóvel, quem a olhasse imaginaria que estava realmente concentrada no livro de relatos sobre comandos náuticos, cujo mofo parecia impregnado em todas as páginas amareladas do antigo livro.
Quando finalmente o Capitão os dispensou, ela demorou-se um pouco mais, continuava pensando nos rascunhos, e de que maneira iria livrar-se deles. Deveria haver uma única maneira de por fim a tudo isso, mas qual seria?
Infelizmente agora não era a hora mais adequada, deveria retirar-se da aula antes que o capitão a notasse, afinal já fazia uns 10 minutos desde que o sinal tocara, alertando o fim da aula chata.
Estudar na Escola da Marinha certamente não era seu sonho, mas o de seu pai sim. Embora não tivesse tido um herdeiro menino para dar continuidade ao seu sobrenome, e a quem pudesse futuramente se reportar como O general, posto tão sonhado pelo pai enquanto aguardava o nascimento do bebê, que por fim mostrou-se uma menina, e pôs um fim aos sonhos do pai. Mesmo crescendo como uma menina, sendo venerada pela mãe, o pai sempre a tratara como alguém que lhe devia algo, e por dever, algo de bom deveria fazer para agradá-lo. Sendo assim, aos 14 anos, conseguiu uma vaga no primeiro curso da marinha para meninas. Poucas se inscreveram, e apenas cinco foram aprovadas. Por sorte, Elie fora uma delas, para alegria do pai, a filha poderia ser, quem sabe, uma Comandante.
Elie odiava o mar, considerava frio e monótono. E os intermináveis semestres em que era obrigada a passar naquele navio a fizera ter asco de qualquer cruzeiro que o pai lhe propiciava como forma de agradar. Passava as férias recostada à janela, fantasiando, imaginando.... muitas vezes lendo romances, novelas. Claro, escondida do pai, que considerava esse tipo de leitura banal e supérflua a filha - uma futura comandante da marinha, quiçá a primeira.
Elie crescera como uma rosa, rodeada por espinhos, onde só os mais cuidadosos poderiam se aproximar. E como tal, era bela e fria aos que a conheciam. Sempre soturna. Sempre cuidadosa sempre receosa. Não possuía dotes comuns as meninas, sempre se dera melhor em atividades que exigiam mais inteligência do que habilidade, o que sempre orgulhara seu pai. Aos dois anos de idade, Elie aprendera a jogar xadrez com um primo de 10 anos. Aos cinco, já era a melhor da casa. Ainda não falava, mas mechia as peças com tal precisão. O pai a considerara uma menina extremante inteligente, quem sabe superdotada, já a mãe se preocupava, pensava se a filha não precisava de tratamentos médicos. Afinal, nunca vira a filha brincar, e sua imaginação sempre fora simplória. Não conseguia acreditar em contos de fada, e sempre dizia a mãe que as histórias que ela lhe contava eram demasiadas chatas e sem nenhuma importância real. Aos 12, Elie publicara seu primeiro artigo cientifico, criticando de forma voraz um conto de fadas muito conhecido, taxando o autor como impostor. Dizendo que o cunho da história não era implícito e sim explicito, por fim, demagogo demais.
Elie, embora parecesse fria a muitos, era compreendida pela tia, talvez a única que enxergasse como era realmente, e, talvez desconfiasse do segredo que a sobrinha insistia em esconder. Elie, por sua vez, nunca desconfiara a tia soubesse a verdade, mas sempre a tratara com amor.

As férias de verão aproximavam-se, e mais uma vez Elie retornaria aos braços família. Sua mãe certamente a estaria esperando com um almoço fabuloso, tortas para sobremesa, doces, tudo o que pudesse imaginar. Seu pai teria provavelmente comprado mais um presente valioso, daqueles que daria inveja a qualquer um de seus amigos - isso se Elie tivesse amigos.
Felizmente já estava em terra, via de longe o navio, afastando-se do bordo. Os professores ansiavam por ver a família. Elie estava no Porto, esperava o pai ou motorista para lhe buscar. Essas férias seriam especiais para Elie, completaria 18 anos, e ao final do ano, completaria esse curso. Estava ansiosa, esperava alcançar o posto sonhado pelo Pai, mas não tinha muita certeza que isso aconteceria. Não havia esforçado-se muito nesse último semestre.
Amoroso era o motorista da família desde sempre, pelo que recordara Elie. Sempre fora atencioso e carinhoso. Sentia por ele uma espécie de amor que nunca sentira por mais ninguém, talvez porque o rosto de cheio de rugas, os cabelos brancos e os olhos azuis inspirassem muita ternura. Um sentimento que Elie procurava refrear quando se tratava dos demais.

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